Maracanã, meu velho amigo,
Tenho acompanhado o noticiário desde o início e, portanto, não faz
muito sentido perguntar como tem passado. Lamentei desde o primeiro
momento, mas não poderia imaginar que as coisas chegariam a esse ponto.
Eu bem sei o quanto me toma por arrogante, mas dessa vez mesmo você deve
me dar razão. Se não sou ainda centenário como meu nome, estou chegando
lá e então me sinto à vontade para fazer agora o papel do senhor de
idade que se põe a aconselhar os mais jovens.
Outro dia vi uma foto sua e não pude reconhecê-lo. O que fizeram de
ti? Muitos dos nossos já passaram antes por processos de “modernização”
(com o perdão da palavra), mas nenhum parece ter sofrido tanto. Não se
tratou apenas de um rejuvenescimento, não foi só a ofensa de te
colocarem essas desnecessárias cadeiras coloridas, foi bem mais do que
um simples encolhimento. Não se contentaram em mudar sua aparência
externa; mexeram por dentro, no âmago, no que te faz distinto de todos
os demais – e te tornaram igual a outros tantos. O que fizeram contigo
foi o que de pior pode acontecer a um estádio: tomaram sua alma.
Alma, meu caro amigo, é o que distingue poucos de nós em meio aos
milhares de estádios que há por aí. E temos (ou tínhamos), você e eu,
muito mais em comum além da alma. Foi aqui, em 1930, que, recém-nascido,
vi a Celeste Olímpica vencer a primeira Copa do Mundo. E foi aí, 20
anos e uma Guerra Mundial depois e com você também recém-nascido, que El
Negro Jefe, Schiaffino e Ghiggia foram buscar o outro Mundial de que se
orgulha o Uruguay. Você pode até não gostar, pois te carimbaram esse
tal Maracanazo para todo o sempre, mas isso nos tornava um tanto mais
próximos. Tanto quanto o fato de sermos os palcos sagrados do futebol
nas Américas – quem haverá de nos desmentir?
A verdade, velho Maraca (se me permite a intimidade), é que estou
para te escrever há tempos e venho adiando a tarefa, mas não deu para
resistir aos acontecimentos mais recentes.
Não sei se você sabe, mas estou em uma semana das mais agitadas, com
jogos decisivos do campeonato nacional e um duelo do nosso selecionado
contra a França. Nesses jogos todos, a rotina é a mesma de sempre: o
povo se fez presente, cada torcedor fica (em pé ou sentado) no lugar que
bem entende, bandeiras se agitam, faixas são penduradas, camisas
tradicionais sobem para o gramado, ouve-se o alento das hinchadas de
lado a lado, ofensas são proferidas sem muito critério, papéis picados
se fazem atirar, vende-se café, choripans, churros e hamburguesas,
Montevideo vive o futebol que nós dois tão bem conhecemos.
Gente de todo tipo dá as caras por aqui. Minhas velhas, históricas e desgastadas tribunas recebem o povo semana após semana.
POVO. Você ainda se lembra do significado dessa palavra?
Novamente fazendo uso da prerrogativa de um idoso de 83 anos que
aconselha um ex-senhor de 63, te digo que é algo bem distinto dessa
gente que te tomou de assalto de uns anos para cá. A verdade, meu bom
amigo, é que te dilaceraram por completo apenas para que burocratas
falassem em seu nome e pudessem cobrar os impropérios de agora (vi e me
assustei com os preços dos ingressos). Não contentes com a extorsão
praticada, ainda querem domesticar o público, submetendo quem te visita a
absurdas cadeirinhas numeradas e querendo impor o jeito como se torce.
Aliás, me recuso a chamar de “torcer” o que se tem feito por aí nesses
tempos tão sombrios.
Por aqui, eu admito, as velhas arquibancadas que viram a primeira
Copa andam precisando de reparos, as cicatrizes já se fazem notar além
do aceitável e há evidentes sinais de cansaço. Não vou negar que alguns
cuidados seriam bem-vindos, mas não pode ser nada como o que fizeram
contigo. Porque, em que pesem todos os problemas que vêm com o tempo,
ainda se vive a história do futebol nessa zona central da velha
Montevideo. E minhas tribunas ainda se chamam Olimpica, Amsterdam,
Colombes e Américas, bem ao contrário das suas, que agora atendem por
letras e números que nada dizem.
O povo ainda pode, semana após semana, olhar para esta velha cancha e
relembrar os grandes esquadrões que por aqui passaram. E minha
estrutura não é feita apenas de cimento – que os oportunistas e
deslumbrados que te mataram certamente chamariam de ultrapassado –, mas é
composta de uma Copa do Mundo, centenas de títulos, incontáveis
clássicos e muitas, inesquecíveis e dramáticas noites de Libertadores.
Por aqui passaram – e continuarão passando – todos os grandes clubes do
continente.
Meu conterrâneo Eduardo Galeano, que tanto te respeita, escreveu
certa vez que eu “suspirava de nostalgia pelas glórias do futebol
uruguayo” e que você “continuava chorando pela derrota de 1950”. Pois a
primeira parte continua verdadeira – o saudosismo me precede –, mas te
fizeram esquecer à força as memórias (boas e ruins) das últimas seis
décadas. Não apenas te tomaram essas lembranças todas, mas afastaram de
ti a gente que o fazia ser o mundialmente famoso Maracanã.
(Outro dia, velho amigo, escutei que se cogita uma candidatura do
Uruguay para sede da Copa de 2030. Pois eu desejo que isso nunca
aconteça. Não quero ter o mesmo destino que impuseram a ti.)
E sim, fiquei sabendo do vexame que você passou com o quase
cancelamento do jogo entre o país que inventou o futebol e o que se diz
“o país do futebol”. Sabe, meu velho, você vai me perdoar, mas isso até
que viria a calhar. Porque um vendeu a alma faz tempo, afastando o povo
das canchas, e o outro tem seguido pelo mesmo caminho, mas de um jeito
muito mais vergonhoso. E eu sinceramente prefiro guardar de ti a imagem
que adorna o Museo del Fútbol, aqui no meu interior: um Maracanã
grandioso, repleto, popular, liberal ao extremo, sem imposições,
malandramente carioca e com o espírito aberto para receber o povo…
O futebol, você vai me perdoar uma vez mais, continua a viver mesmo
aqui no Uruguay – e, que eles não saibam disso, lá do outro lado do Río
de La Plata…
Saludos,
Centenario de Montevideo.
Fonte: http://www.testosteronasports.blog.br Por: Jean Vieira ⎯ Em: Futebol ⎯ 06 de junho de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário